terça-feira, 20 de abril de 2010

as palavras

Tenho saudades de ter o meu canto, escondido e guardado sem que se veja.
O meu abrigo secreto, sereno, para me encostar quando preciso.
Tenho as palavras guardadas cá dentro. Arrumadas em caixas. Pequenas. Quadradas.
Para caberem todas. Lado a lado. Simetricamente.
São muitas, são tantas, que quase não cabem no espaço que têm.
E eu encolho-as e arrumo-as todas juntas, quietas, umas em cima das outras para ficarem ali, guardadas no canto que lhes é destinado. São muitas, são tantas.
E de vez em quando pego nas caixas e abro-as devagar. Uma a uma para que nenhuma das palavras se perca. Para que nenhuma fuja de mim. Quero-as todas comigo. Junto de mim. Ao pé de mim. Para as ir buscar quando quiser.
E fico a olhar para elas – as palavras - para ver se as percebo. Na esperança que me digam coisas novas.
Mas as palavras que guardo nas caixas apenas sussuram baixinho aquilo que foram. E eu não percebo se querem sair, se querem ficar. Se algum dia se vão tornar outras palavras que queiram dizer outras coisas. Coisas diferentes. Diferentes coisas.
E é no silêncio destas palavras que encontro espaço para guardar mais algumas que vão surgindo pelo caminho. E guardo-as a sorrir.
Porque destas palavras também se faz a minha vida.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

o glamour do marketing

É difícil gerir as vontades e desejos de quem está à nossa volta. São os maridos, as mulheres, os filhos, os amigos, os colegas de trabalho. Toda a gente quer sempre alguma coisa diferente do que queria antes.

É o destino de férias que ora é uma ilha paradisíaca, ora uma cidade desconhecida. É o estilo de música dos jovens e adolescentes que ora é hip-hop, ora é metal do mais pesado que há quando tinhamos acabado de comprar para oferecer o último álbum do Jay Z. É "o Pedro e a Maria" que agora é "o Pedro e a Isabel" e a "Ana e o João" que afinal agora já são" a Ana e o Filipe". São os amigos para a vida que tínhamos no local de trabalho e que afinal querem o nosso lugar e nos passam a perna. É o SMS que recebemos constantemente: "o meu número de telefone foi alterado, por favor gravem este para futuros contactos". É o computador que já não tem memória suficiente -afinal já tem dois anos, a máquina fotográfica que está obsoleta - foi comprada no ano anterior, o carro que não tem espaço suficiente - quando o comprámos há três anos era tudo o que podíamos desejar, o telemóvel que com seis meses está bom para a reforma.
Não sabemos o que queremos. Queremos tudo e queremos rápido. E se calhar já não queremos hoje o que queríamos ontem que a oferta é demasiada para continuarmos a querer as mesmas coisas.
É difícil viver com isto.
Mas lá colmatamos estas constantes indecisões (nossas e dos outros) com a nossa profissão. Ao menos aí sabemos que as tarefas de ontem serão as de hoje e se soubermos exactamente o que temos que fazer não estamos sujeitos a modas.
Isto se formos Revisores Oficias de Contas, por exemplo. Nesse caso, cabe-nos saber as leis e as políticas contabilísticas e aplicá-las na análise das contas de uma determinada empresa. De vez em quando, lá mudam as leis, mas isso é só de vez em quando. De uma maneira geral não estamos sujeitos a vontades e a desejos externos. As coisas são como são e pronto. Só precisamos de saber de manhã quando acordamos, o mesmo que sabíamos à noite quando nos deitámos. E isso chega.
Quando trabalhamos em Marketing o caso muda de figura. Quando trabalhamos em Marketing a nossa função é dar ao cliente aquilo que ele quer. Ora, se os clientes são pessoas e as pessoas não sabem bem o que querem, a tarefa de um profissional de marketing é assim como a de um acrobata sem rede. Por mais que faça estudos de mercado e inquéritos de opinião, nunca fica com a certeza se o resultado de hoje ainda será válido amanhã. É arriscar.
E passamos por isso 24 horas por dia a gerir emoções, desejos, vontades e sonhos dos outros. Fazemo-lo na nossa vida pessoal, fazemo-lo na nossa vida profissional. e a somar a isto ainda temos que gerir as nossas próprias emoções, desejos, vontades e sonhos. E como somos pessoas, às vezes também não sabemos muito bem o que queremos.
Quem tem profissões "normais", daquelas em que os dias se sucedem sem terem que pensar no que os outros querem, acredita que o Marketing é uma profissão fascinante.

Se estamos num jantar em que as pessoas não se conhecem, e alguém pergunta: "em que é que trabalha?",e a resposta for "sou revisor ofical de contas", a conversa morre por ali. De facto não há mais nada a dizer. Ser revisor oficial de contas é.... ser revisor oficial de contas! É tratar números uns atrás os outros todos os dias. Não é uma profissão sexy. Não tem glamour.
Mas se a resposta for "trabalho em Marketing", aí passamos a ser o centro das atenções e as perguntas sucedem-se em catadupa. Trabalhar em Marketing é ter uma profissão com glamour. Toda a gente quer ouvir o que temos para dizer sobre os anúncios que fizemos, as festas que organizámos, os VIP's que acham que conhecemos. Porque para a generalidade das pessoas, trabalhar em Marketing é isto. São dias de festa uns atrás dos outros, é fazer coisas divertidas, é ter um emprego de brincar. É "fazer bonecos". Mal sabem as pessoas a dor de cabeça que é perceber o que vai na cabeça dos outros.

Mas no final do dia, a pergunta que fazemos é só uma:

Se eu podia ser Revisora Oficial de Contas? Podia. Mas não tinha o mesmo Glamour!

segunda-feira, 12 de abril de 2010

conversinhas

Não, não ando a juntar as peças do puzzle do meu passado, mas no dia de hoje não posso não pensar nisto. Mais um do baú (2004).


Os dias quentes lembram-me a casa dos meus Avós. As longas tardes passadas no jardim. O largo onde aprendi a andar de bicicleta. Os canteiros que na minha imaginação permitiam fazer "caminhos" que eu percorria durante longas horas.
As férias de Verão eram passadas ali. Acordar a ouvir os passarinhos. Sem pressas. Sem horas. Sem obrigações nem responsabilidades.

E o dia começava leve. Sem horas. Sem pressões.

Depois era tempo de ir passear. O Chiado era o local de eleição. As escadas rolantes do Grandela foram testemunhas de muitas viagens para cima e para baixo, com a emoção de quem dá a volta ao mundo. E quando já era hora de vir embora lá se ouviam as vozinhas outra vez: "Oh Avó, só mais uma vez!" E lá íamos as 3 mais uma vez subir e descer a escada rolante.

A minha Avó tinha a paciência que só as Avós conseguem ter. Dizia sempre que sim. Para ela estava sempre tudo bem, desde que para nós estivesse bem. Não me lembro de alguma vez me ter ralhado, levantado a voz ou criticado fosse o que fosse. Nunca.

Havia dias em que íamos a uma casa de chá no Rato comer scones e beber chocolate quente. Isso é que nós gostávamos! E ríamos, ríamos, de tudo e de todos. E divertíamo-nos as 3 como se não houvesse amanhã.

Quando chegávamos a casa, era tempo de mais brincadeira. De ir para o jardim. De andar de patins ou de bicicleta enquanto o meu Avô não chegava para jantar. Ficava contente quando ele chegava. Não era um homem de muitas falas. A maior parte das vezes entrava mudo e saia calado. Mas não era sisudo. Era simpático, afável, paciente. Só não gostava de falar.

O serão passava depressa e o meu Avô era o primeiro a ir para a cama. Ressonava tão alto que se ouvia lá em baixo e isso divertía-nos.

Em casa da minha Avó podíamo-nos deitar mais tarde e ver as novelas proibidas em casa. Éramos tratadas como gente grande!

Quando subíamos para o quarto, o dia ainda não tinha acabado, e chegava aquela que era a melhor hora do dia: as "conversinhas".

- Oh Avó, vamos para as conversinhas?

As Conversinhas. A hora de todas as revelações. De todos os segredos.

Nós enfiávamo-nos na cama e a Avó sentava-se ao pé de nós a conversar sobre tudo.

Contava-nos coisas do passado. Histórias suas. Da época do Colégio Interno. Da Tia com quem fora criada que era uma verdadeira madastra. Dos irmãos. Dos pais que não conheceu.

Contava-nos segredos. Os namorados que teve. As amigas que teve. Os sonhos de juventude.

Contava-nos coisas que nunca tinha contado às filhas e isso fazia-nos sentir especiais.

Muitas vezes íamos ao baú buscar roupas antigas, cabeleiras e colares e vestíamos e despíamos até mais não puder, no meio de tantas, tantas gargalhadas que ecoavam pela casa à mistura com o ressonar do meu Avô.

Há dias em que tenho muitas saudades deste tempo, das conversinhas e dos meus Avós.

Há dias em que tenho muitas saudades da luz que à noite entrava pelas frestas da persiana e de adormecer de mão dada à minha irmã.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

o cheiro das memórias

Abri a janela e o cheiro da minha infância invadiu o meu corpo, entrou-me no sangue e tocou-me na alma.

É o mesmo cheiro.

Exactamente o mesmo cheiro dos dias em que o tempo era tempo de ter todo o tempo do mundo.

Em que as noites eram passadas sob um tecto de estrelas, entre risos e gargalhadas, entre conversas de quem tem ainda tudo para aprender e todas as certezas do mundo.

O cheiro do conforto de ter vivas todas as pessoas de quem gostamos.
O cheiro da despreocupação, da inocência, da beleza genuína das coisas.
O cheiro das primeiras paixões.

Abri a janela e recuei no tempo.
E percebi que trago comigo esse cheiro.
Guardado numa caixinha.
Uma caixinha vermelha que bate dentro do meu peito.

terça-feira, 6 de abril de 2010

reflexo

Estendo a mão. E a mão à minha frente estende-se para mim.
Quem é esta pessoa no espelho?
Que pessoa vêem as pessoas que olham para mim?
Porque eu, quando me vejo, não tenho a certeza se esta pessoa sou eu.
Que imagem têm as pessoas, desta pessoa que eu sou?
Que ideia fazem de mim?
Que valores acham que tenho?
Que certezas, que dúvidas, que medos, que angústias, que amores pensam que sinto?
E quando olho para esta pessoa que agora olha para mim, não sei se a conheço.
Olho-a e recuo. Sou eu.
Sou eu quem me olha e não reconhece o que vê.
O que importa o que pensam os outros quando me vêem?
O que importa se não me reconhecem?
Dos dias cinzentos aos mais luminosos, é a mim que corta o vento gelado,
É a mim que queima a água a ferver,
sou eu quem grita em silêncio
e sussurra baixinho o que vai dentro de mim.
Que esta pessoa no espelho sou eu.
E sou eu quem a vê. Mesmo quando não olha.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

hidratantes, refirmantes e adelgaçantes

Este foi repescado. É de 2004, mas continua actual! Talvez tenham apenas mudado os preços e as quantidades necessárias para atingir os mesmos objectivos...

Hoje finalmente está um dia de Primavera. E a Primavera seria a estação perfeita, não fosse o facto de ter um defeito incrível: antecede o Verão. Não me interpretem mal. Eu adoro o Verão. Mas verão é sinónimo de praia. Praia é sinónimo de biquini. E biquini é sinónimo de uma série de defeitos que assumem outras proporções por esta altura. Tudo isto torna a Primavera uma estação stressante. Há que começar a tomar providências e encontrar curas milagrosas para os disparates feitos em 8 meses.

Arregaçamos as mangas e vamos à luta. Primeiro temos que nos munir das armas necessárias. Uma ida ao hipermercado é perfeitamente capaz de resolver este problema. São um nunca acabar de prateleiras cheias de diferentes produtos, diferentes aromas e diferentes fins. Cada embalagem é uma nova promessa. Cada embalagem é um sonho à distância de 7 ou 8 euros. Quem consegue resistir?! Eu não!

E assim, lá nos abastecemos nós de tudo o que é necessário para enfrentar o mundo de biquini: hidratantes, esfoliantes, adelgaçantes, anti-celulíticos, anti-estrias, bronzeadores, auto-bronzeadores, protector solar, creme hidratante para depois do sol, protector solar para o rosto, gel de banho para peles bronzeadas, gel de banho hidratante, creme hidratante para depois do banho, creme para os pés, creme para as mãos, vernizes, removedor de verniz, creme anti-cutículas, anti-rugas, anti-idade e já agora levo também este protector para os lábios que o Sol está uma loucura!

domingo, 4 de abril de 2010

livro de vida - o princípio

A educadora da minha filha tem como projecto para este ano fazer o Livro de Vida de todos os meninos. Um livro que fala de como tudo começou, quais os sentimentos e emoções desde que soubemos que íamos ser Pais, às primeiras experiências depois do nascimento.

O nosso começa assim:

Finalmente! Já cá estou há 5 semanas e a minha Mãe ainda tem dúvidas sobre a minha existência. O meu Pai não. Esse está sempre a dizer que se percebe perfeitamente que eu estou na barriga da minha Mãe. “Não vês como o teu corpo está diferente?”, diz ele. Mas a minha Mãe não está convencida. Ela quer que seja verdade, mas tem as suas dúvidas. E como pelo que já percebi é um pouco impaciente e não gosta de esperar, foi fazer uma análise ao sangue porque a da urina dava negativa. Não percebo porque dá negativa, se eu estou cá e vim para ficar. Olha, olha, estamos a entrar na clínica para levantar o resultado. São 6 da tarde do dia 18 dia de Maio de 2006.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

clientes novos clientes antigos

Se pensarmos bem, todos nós somos gestores de pequenas empresas e temos como objectivo principal aumentar as vendas e fidelizar os clientes.
Gerimos pequenas empresas que são a nossa própria vida, vendemos um produto específico que somos nós próprios e temos como clientes todas as pessoas que queremos manter na nossa esfera de relações.
As empresas são pródigas em "fazer olhinhos" aos novos clientes. São promoções, são descontos, são telefonemas "só para ver se precisa de mais algum esclarecimento". É a disponibilidade total e absoluta. "Isso não é um problema para nós, é uma oportunidade de melhoria".
E nós, gestores das nossas pequenas empresas que são as nossas vidas, fazemos igual. De repente, aparece-nos alguém novo. De quem gostamos. A quem queremos agradar. Que queremos seduzir. Que queremos que goste de nós. E todos nós somos qualidades. Somos agradáveis, simpáticos, disponíveis, atenciosos, meigos, solícitos. Estamos sempre lá. Estamos sempre bem arranjados. Estamos sempre bem dispostos. Somos descomplicados. Somos a perfeição em pessoa. Temos tempo. Tempo para ouvir. Tempo para dar. Tempo para sentir. Tempo para admirar.
As empresas esquecem-se dos clientes antigos. Não lhes oferecem as promoções. Não lhes fazem descontos especiais. Não telefonam apenas e só para saber se está tudo bem. Não entendem as sugestões como oportunidades de melhoria, mas sim como reclamações às quais não dão seguimento. Enviam um cartão de Natal com a assinatura digitalizada e é se não se esquecerem.
E nós fazemos igual. Descuramos as pessoas que temos há mais tempo na nossa vida. Não mimamos. Não damos atenção. Não seduzimos. Complicamos. Não temos tempo. Estamos cansados. Não nos arranjamos só porque sim. Não telefonamos só para dizer que gostamos. Não alimentamos a magia. Não oferecemos um presente sem data especial, só porque nos lembrámos que o outro iria gostar.
Enquanto houver oferta, a fidelização dos clientes depende mais das empresas do que dos próprios clientes. Cabe às empresas manter os clientes satisfeitos, sem vontade de mudar.
Sendo nós os gestores das nossas pequenas empresas, não dependerá também de nós a fidelidade de quem queremos manter na nossa vida?
Se nos esquecermos de seduzir, haverá quem o faça e depois não nos podemos queixar se a concorrência chegar, linda, disponível e cheia de novidades, e nos roubar os clientes!

manhãs perfeitas

Gosto dos fins-de-semana.
Gosto da ausência de horas marcadas, de deixar fliuir os dias, de poder acordar devagar.

Gosto da luz que entra no quarto ao nascer da manhã e que invariavelmente traz com ela os passos pequeninos, apressados até junto de nós. Pego-lhe, dou-lhe um beijo. Deito-a entre nós. E ficamos assim. A mão pequenina na minha cara, a fazer-me festas, aquela voz doce a dizer "Mamã". E eu a sentir o calor do seu corpo. O meu braço a abraça-la num abraço grande.

E passadas as horas que o corpo diz serem suficientes, vamos acordando.
Abro os olhos e vejo aqueles olhos que têm o mundo lá dentro. Sorrio para ela. Ela sorri para mim. A sua mão novamente na minha cara a fazer-me festas. E eu digo:

- Bom Dia Princesa Alegria!

E no meio de um abraço apertado responde :

-"Bom Dia Mamã Alegria!"

E o dia começa. Perfeito.

no fundo do poço

No fundo do poço havia uma moeda.
Todos os dias de manhã, antes de ir para a escola, passava no poço e debruçava-me só para a ver reluzir. Não se percebia bem que tipo de moeda era, que imagem tinha ou quanto poderia valer. Vivia fascinado com aquela moeda que alimentava os meus sonhos.
Dizia a minha Mãe que aquela moeda tinha sido atirada para ali há muitos, muitos anos, por um menino que vivia numa aldeia próxima. Naquele tempo, acreditava-se que aquele era o poço dos desejos e que quem para ele atirasse uma moeda, veria o seu desejo realizado em pouco tempo.
Muitos tinham sido os que haviam tentado a sua sorte, não se sabendo no entanto se os seus desejos foram ou não realizados. Sabe-se apenas que todas as moedas haviam sido roubadas por aquela que ficou conhecida como "A Quadrilha do Poço dos Desejos".
- Se roubaram todas as moedas, como é que aquela ainda lá está? - perguntei eu à minha Mãe - Porque é que não a levaram?
- É simples, - disse a minha Mãe - porque não conseguiram.
Diz a lenda que a moeda foi atirada pelo menino e que a única coisa que ele queria era que a capacidade das pessoas acreditarem umas nas outras não desaparecesse nunca. Enquanto a moeda ali estivesse, isso seria possível.
Durante muito tempo, muitas foram as pessoas que a tentaram tirar de todas as maneiras, mas a moeda pura e simplesmente não se move. Está colada ao fundo do poço, e nada, nem ninguém a consegue tirar.
Passaram-se muitos anos. Anos que me levaram por outros caminhos que não o do poço. Mas hoje, nem sei muito bem porquê, as minhas pernas seguiram o trilho até ao poço da minha infância e debrucei-me para espreitar.
No fundo do poço havia uma moeda. Mas agora já lá não está.

espelho

E era assim que gostava de saber escrever.

Este é "O" poema.

O meu poema preferido de todos os poemas.

somos

Somos o dia em que nascemos.

Somos a soma de todos os dias que vivemos depois do primeiro.

Somos a curva do tempo que nos leva para longe e nos traz de volta para junto de nós.

Somos as rugas na cara, as pernas cansadas, os dias sem fim.

Somos as gargalhadas que demos, os olhares que trocámos, os prazeres que tivemos.

Somos os lábios beijados, as mãos que sentimos, os corpos suados que se perderam em nós.

Somos o sal das lágrimas que nos molharam o rosto em dias de mágoa.

Somos homens e mulheres. Somos filhos, somos pais, somos amigos.

Somos o início e o fim do arco-íris. Somos as cores que quisermos.

Somos os dias de raiva, a fúria contida, os sonhos desfeitos.

Somos os medos sentidos em dias incertos de amores contrafeitos.

Somos a nossa vontade e a vontade que temos de não estarmos sozinhos.

Somos os remorsos dos erros. Marcados na carne. Cravados na alma.

Somos as pedras da rua que outros chutaram sem pena de nós.

Somos a nossa própria sombra, quando fingimos que não somos nós.

Somos os dias de Inverno em que só nos aquece o calor da lareira.

Somos a morte e a vida, as trevas temidas, a luz verdadeira.

mal direito

- Oh Mãe, isto está tudo mal direito!

:-) :-) :-) :-) :-) :-) :-) :-)

Deve ser do novo acordo ortográfico.

15 minutos

Pego na mala, nas luvas, no cachecol, no chapéu de chuva e nos sacos. Tento encaixar tudo da melhor maneira. Fico sempre espantada com a quantidade de coisas que conseguimos transportar apenas com duas mãos e dois braços.
A chave do carro!! Bolas, falta a chave do carro. Onde é que a enfiei? Não está na cadeira. Estará na mala? Pouso - ou atiro, já nem sei - tudo outra vez, no chão, em cima do sofá. Procuro na mala. Cheia de coisas. A mala cheia da minha vida. A minha vida inteira está dentro daquela mala. Nada. Onde raio é que eu pus a chave do carro?! E eu atrasada! Sempre atrasada!
Será que a deixei no bolso do casaco de ontem? Vou da sala ao quarto em passo apressado e pesado. O barulho dos saltos incomoda-me. Ecoa dentro da minha cabeça. Previsível!
Pego em tudo outra vez. Toca o telemóvel. Fuck! Não acredito que toca o telemóvel. Vai começar tudo outra vez. Tou? Sim, estou a sair agora. Demoro 15 minutos. Talvez menos. Até já.
Fecho a porta. Chamo o elevador. Rezo para que não venha ninguém lá dentro. Há poucas coisas mais contrangedoras que estarmos fechados em dois metros quadrados com alguém que não queremos conhecer. Vazio. Valha-me isso.
Chego à garagem e sigo até ao carro. E o barulho dos saltos a ecoar dentro da minha cabeça. Atiro com tudo para o banco de trás. Tudo não. Que o telemóvel pode tocar e tenho que o ter à mão. A mala no banco do pendura. Sempre a mala no banco do pendura que gosto de ter a minha vida ao pé de mim. 15 minutos. Talvez menos.
Ligo o carro, e logo de seguida o rádio. Preciso da música. Arranco e só depois ponho o cinto. Foi sempre assim. Não sei porquê.
Saio da garagem acelerada para logo a seguir ter que abrandar porque o carro da frente vai a fazer turismo. Vá lá, anda lá! Esta gente é boa para ir buscar a morte! Empatas do caraças! Fico em ânsias. Com ganas de lhe chamar nomes. 15 minutos. Talvez menos. Gorda! Deve ser gaja e gorda!
Felizmente chegamos a uma estrada onde nunca passa ninguém. 15 minutos. Talvez menos. A lomba não me assusta, aqui nunca passa ninguém. Ponho o pisca, guino o volante e acelero. Saio detrás daquele carro que me empata a vida. Saio. No único dia em que passa alguém.
15 minutos, talvez menos.

não gosto

Não gosto de meias palavras.

Não gosto do que fica por dizer.

Não gosto do vai-se andando, do mais ou menos, do assim-assim.


Não gosto do logo-se-vê, não gosto do talvez.

Não gosto que joguem por mim, quando sei que é a minha vez.


Não gosto de horas incertas. Não gosto de falsas modéstias.

Não gosto de palavras doces, quando sei que não são honestas.


Não gosto de olhos que mentem. Não gosto de almas vazias.

Não gosto de mãos pequenas. Não gosto de pessoas frias.


Não gosto de dizer adeus, quando sei que chegou o fim.
Mas gosto de acordar de manhã e sentir que gostam de mim.

camilhar

- Meninas, estão prontas?

- Não Pai! A Mãe ainda está a camilhar-se!


- ...........

no dia de hoje

Um dia, por inspiração de alguém ou por vontade própria, (re)começo a escrever. Pego nas letras e nas palavras que estremecem dentro de mim e dou-lhes o sentido das frases. Daquelas frases em que (nos) lemos e quando as revemos não fazem sentido nenhum.

Um dia, como hoje, ou como outro dia qualquer, ponho por escrito o que vai cá dentro e deixo sair em silêncio o que não sai nas palavras que digo, porque sempre que o digo não soam aquilo que quero que se oiça.

Hoje, no dia em que revisitei os meus fantasmas, me perdi de novo no sal das lágrimas e no sonho do tempo, senti que era o dia de voltar a algum lugar que me aceitasse a escrita. Que ouvisse os murmúrios furiosos das teclas em que carrego como se carregasse nos males do mundo e entrasse no centro de mim.

De hoje em diante, talvez volte aqui de vez em quando. Sempre que não couber dentro de mim tudo o que tenho para dizer, sempre que as palavras forem demais para continuarem soltas e perdidas no vazio do tempo e na imensidão do espaço.

Um dia, por inspiração de alguém ou por vontade própria, (re)começo a escrever. Foi hoje o dia.